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VENTOS DE UTOPIA

Lucas Albuquerque* 

 

      

           Sob o céu azul ensolarado logo abaixo da linha do equador, uma pipa losangular é empinada por meninos, todos tão inocentes quanto a vida ainda permite. Os movimentos rápidos e furtivos de suas mãos mantêm o objeto no ar, cuja estampa figura a bandeira do Brasil, verde e amarela, com a inscrição Re-Utopya cravada ao centro. Conferem seus próprios sentidos para a obra "Revoar" (2022) do artista goiano Hal Wildson, cujo corpo de trabalho conjuga símbolos, textos, imagens e documentos de um Brasil formado pelas diásporas, pelas retomadas e, principalmente, pela reivindicação de uma nova utopia. Se o prefixo “re-” utilizado por Wildson em sua bandeira pode funcionar como prenúncio sobre um possível aspecto reparador da construção de novos imaginários acerca da identidade brasileira, sua prática dialoga com uma miríade de autores e pensadores que fizeram da utopia uma ferramenta ideológica sobre a qual os mitos fundadores  foram erguidos. 

           O não-lugar da utopia brasileira, habitado pelo destemido Peri (O Guarani, 1857) de José de Alencar, o indolente Macunaíma (1928) de Mário de Andrade, ou mesmo o tenaz e crítico Pitum (Utopia Selvagem, 1982) de Darcy Vargas, incorporam-se  à nossa produção literária na aspiração de criar, reconstituir ou decifrar o que constitui uma suposta brasilidade. Tomam de empréstimo as noções humanísticas e estilísticas de seu tempo, é claro, mas o concebem, mais ou menos criticamente, através da inscrição de uma imagem sobre as culturas que formam a plural identidade brasileira. Vistas sob a ótica de uma elite letrada, fazem da alteridade o delineado sob o qual valores morais e cativos preenchem e colorem tais narrativas. Se a ideia de utopia é cara para Hal Wildson, seria errôneo afirmar que esta opera em seu trabalho sob o desejo de reconstrução destas bases. O não-lugar proposto por sua Re-Utopya carrega, antes, o prefixo cujo sentido é tanto o de repetição como o de reforço, e é nessa chave de leitura que podemos elaborar a maneira na qual seus trabalhos se inscrevem na história: recuperar a força contida na construção de uma utopia brasileira cujos postulados se fincam sobre as filosofias Teko Porã, desenvolvida pelo povo Guarani, e Ubuntu, cuja origem é associada aos povos sul-africanos Zulu e Xhosa, encontrando em ambas o princípio de igualdade e harmonia que estrutura as imagens de um Brasil avesso à colonialidade.

             Fazendo uso de textos fundamentais para pensar a formação do Brasil, tal como “O processo civilizatório” (1939) de Darcy Ribeiro e “Visão do Paraíso” (1959), de Sérgio Buarque de Holanda, a série Utopia Original (2020-2023) inscreve nas folhas soltas imagens de reinvidicação e emancipação de povos negros e indígenas frutos da composição de fotografias de manifestações populares. Cenas que se formam mediante um procedimento pictórico e textual cravado pelas matrizes tipográficas de antigas máquinas de datilografar e carimbos cujo uso coloca em colapso a ideia de passado, presente e futuro num sentido linear.                                 Integrante desta série, o trabalho Memória, semente do futuro (2023) apresenta uma marcha de jovens negros que carregam consigo bandeiras onde se lê as palavras “futuro”, “memória” e “semente”. Uma quarta, ainda, faz menção à bandeira Re-Utopya (2021-2022), frequentemente inserida em trabalhos do artista e em contextos urbanos. Ao fundo, páginas do livro “Brasil: país do futuro”, de Stefan Zweig” e “Utopia Selvagem”, de Darcy Ribeiro, constroem solo fértil sob o qual a pintura se superpõe. Inscrições produzidas no mesmo tempo tecnológico do qual o artista se vale para produzir suas imagens formadas por tons de vermelho e preto. Se uma primeira leitura confere à cena uma vigorosa esperança sobre a produção de um porvir carregado sob os ombros de um povo há tanto subalternizado, a reescrita da história proposta por Hal contrapõe o sentido de origem em imagens ao mesmo tempo documentais e ficcionais, refletindo assim sobre a oficialidade das narrativas e reivindicando esse poder para si.

             Em uma abordagem complementar, o artista constrói uma prática que atua na reivindicação pela imagem, tanto no sentido individual como coletivo. Na série memória e infância (2019), imagens datilografadas apresentam uma infância pessoal construída no laço entre lembrança e ficção. Formadas pelo agrupamento da frase “memória, palavra, esquecimento”, as cenas fazem da superposição das letras seu próprio tônus. Em sua vermelhidão, figuram o jovem Hal em paisagens contemplativas, como podemos ver em Filho do Araguaia (Das memórias do rio) (2019 - 2023), em que seu corpo relaxa em uma canoa que navega sobre o rio. Um silêncio construído num mar de palavras sem vocalização. Já na esfera coletiva, o artista parte de suas próprias digitais na série Singularidades (2020-2023) para demarcar ilhas de subjetividades de onde surgem rostos formados pelos sulcos e linhas em preto. Resultado da sujeira das mãos formada durante o processo de datilografia, sua presença convoca uma trama de pretos, pardos, indígenas e mestiços que devolvem o olhar ao público, reafirmando sua importância no coletivo. A mão do artista, enquanto lugar de originalidade e virtude, torna-se instrumento de criação artística à serviço de uma reflexão social.

             Percorrendo o fluxo das águas e das raízes, duas outras séries do artista goiano apontam para uma memória da natureza, fazendo desta a medida do homem. Na série Afluentes (2022), o curso rizomático dos rios e riachos brasileiros criam em seu entrecruzamento a imagem de rostos “indígena-preto-ancestrais”, comenta Wildson. Evocam a sabedoria dos escravizados fugidos, que faziam do trajeto das águas as suas rotas de fuga para quilombos e outros locais de acolhimento, bem como o conhecimento ancestral dos povos indígenas de Abya Yala. Por fim, estabelecendo um retorno à uma de seus primeiros trabalhos, o políptico Re-Florestar Utopya (2022) faz menção à Re-Utopya, consistindo no hasteamento da bandeira amarrada à um tronco de árvore nas margens do córrego do Ipiranga (SP). Alocada em ponto simbólico que demarca a proclamação da independência, suas raízes tornam-se visíveis na edição em acrílica e nanquim, não apenas fortalecendo a produção de uma nova memória como também obstruindo as placas de um chão social carregado de significações coletivas que urgem por uma revisão.

            Assim atua o trabalho de Hal: na intersecção entre a perenidade da lembrança e a reescrita da história, os ideais de um novo porvir flutuam pelos ventos dos céus, manejados pelas mãos daqueles que levantam suas cabeças e recusam a servidão. Admiram o céu e veem nas nuvens imagens de uma utopia renovada em formas mórficas enquanto navegam o azul com suas pipas verde e amarelo.

   

Winds of Utopia
by Lucas Albuquerque

Under the sunny blue sky, just below the equator, a diamond-shaped kite soars, propelled
by boys as innocent as life still permits. The swift and deft movements of their hands keep
the object aloft, adorned with the flag of Brazil, green and yellow, with the inscription “Re-
Utopya” boldly centered. They impart their own meanings to the artwork “Revoar” (2022) by
the Goiás-based artist Hal Wildson, whose body of work combines symbols, texts, images, and
documents of a Brazil shaped by diasporas, reclaimings, and above all, the pursuit of a new
utopia. If the prefix “re-” used by Wildson in his flag might suggest a possible reparative aspect
in the construction of new imaginaries about Brazilian identity, his practice engages with a
myriad of authors and thinkers who made utopia an ideological tool upon which founding
myths were built.


The non-place of the Brazilian utopia, inhabited by the fearless Peri (O Guarani, 1857) by José
de Alencar, the indolent Macunaíma (1928) by Mário de Andrade, or even the tenacious and
critical Pitum (Utopia Selvagem, 1982) by Darcy Vargas, becomes part of our literary production
in the aspiration to create, reconstruct, or decipher what constitutes a supposed Brazilianness.
They borrow from the humanistic and stylistic notions of their time, of course, but conceive
it, more or less critically, through the inscription of an image upon the cultures that shape the
plural Brazilian identity. Viewed from the perspective of a literate elite, they make alterity the
framework under which moral values and captives fill and color these narratives. If the idea
of utopia is dear to Hal Wildson, it would be erroneous to assert that it operates in his work
with the desire to rebuild these foundations. The non-place proposed by his Re-Utopya carries,
instead, the prefix whose meaning is both that of repetition and reinforcement, and it is in this
reading key that we can elaborate on how his works inscribe themselves in history: to recover
the strength contained in the construction of a Brazilian utopia, whose principles are rooted in
the Teko Porã and Ubuntu philosophies, developed by the Guarani people and associated with
the South African Zulu and Xhosa peoples, respectively, finding in both the principle of equality
and harmony that structures the images of a Brazil opposed to coloniality.


Using fundamental texts to think about Brazil’s formation, such as Darcy Ribeiro’s “O processo
civilizatório” (1939) and Sérgio Buarque de Holanda’s “Visão do Paraíso” (1959), the Utopia
Original series (2020-2023) inscribes images of the demands and emancipation of Black and

Indigenous peoples on loose sheets, created from compositions of photographs of popular
demonstrations. Scenes that form through a pictorial and textual process imprinted by the
typographic matrices of old typewriters and stamps, whose use collapses the idea of past,
present, and future in a linear sense. As part of this series, the work “Memória, semente do
futuro” (2023) presents a march of young Black individuals carrying banners with the words
“future,” “memory,” and “seed.” A fourth image alludes to the Re-Utopya flag (2021-2022),
frequently included in the artist’s works and urban contexts. In the background, pages from
Stefan Zweig’s “Brasil: país do futuro” and Darcy Ribeiro’s “Utopia Selvagem” create fertile
ground upon which the painting is overlaid. Inscriptions produced in the same technological
era from which the artist draws to create his images, formed in shades of red and black. If an
initial reading gives the scene a vigorous hope for the production of a future carried on the
shoulders of a long-subjugated people, Hal’s rewriting of history opposes the sense of origin
in images that are both documentary and fictional, reflecting on the officialness of narratives
and demanding that power for itself.


In a complementary approach, the artist builds a practice that acts in the claim for images,
both individually and collectively. In the series “Memória e Infância” (2019), typewritten
images present a personal childhood constructed in the bond between memory and fiction.
Formed by the grouping of the phrase “memória, palavra, esquecimento” (memory, word,
forgetting), the scenes make their own tone through the superimposition of letters. In their
redness, young Hal is depicted in contemplative landscapes, as seen in “Filho do Araguaia
(Das memórias do rio)” (2019-2023), where his body relaxes in a canoe navigating the river. A
silence constructed in a sea of unspoken words. In the collective sphere, the artist uses his own
fingerprints in the “Singularidades” series (2020-2023) to demarcate islands of subjectivities,
from which faces are formed by the grooves and lines in black. Resulting from the residue on
his hands during the typewriting process, their presence summons a web of Black, Brown,
Indigenous, and mixed-race individuals who return the gaze to the public, reaffirming their
importance in the collective. The artist’s hand, as a place of originality and virtue, becomes an
instrument of artistic creation in the service of social reflection.


Tracing the flow of waters and roots, two other series by the Goiás artist point to a memory

of nature, making it the measure of man. In the “Afluentes” series (2022), the rhizomatic
course of Brazilian rivers and streams creates the image of “indigenous-Black-ancestral” faces
in their intersection, as Wildson comments. They evoke the wisdom of escaped slaves, who
used the paths of water as escape routes to quilombos and other places of refuge, as well
as the ancestral knowledge of Indigenous peoples of Abya Yala. Finally, returning to one of
his earlier works, the polyptych “Re-Florestar Utopya” (2022) refers to Re-Utopya, consisting
of hoisting the flag tied to a tree trunk on the banks of the Ipiranga stream in São Paulo.


Placed in a symbolic point that marks the Proclamation of Independence, its roots become
visible in the acrylic and ink edition, not only strengthening the creation of a new memory
but also obstructing the signs of a social ground laden with collective meanings that urgently
require revision. This is how Hal’s work operates: at the intersection between the permanence
of memory and the rewriting of history, the ideals of a new future float through the winds of
the skies, guided by the hands of those who raise their heads and refuse servitude. They gaze
at the sky and see in the clouds images of a renewed utopia in ever-changing forms, while they
navigate the blue with their green and yellow kites.

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