Hal
Wildson
HAL WILDSON E A UTOPIA BRASILEIRA
Divino Sobral*
Até os anos 1940 e a chegada da Marcha para o Oeste, instrumento de penetração do Estado Novo (1937–1945) decretado pelo Presidente Getúlio Vargas, a margem goiana do rio Araguaia era considerada fronteira da civilização, e a partir dali o povo Xavante resistia duramente, impedindo o avanço da moderna invasão branca sobre a selva do Mato Grosso, compreendida como vazio demográfico a ser ocupado pelo Estado. Hal Wildson nasceu em Aragarças, cidade goiana que margeia o Araguaia, onde as narrativas do povo empobrecido e abandonado descrevem as memórias de violências, provocadas principalmente por garimpo ilegal e por conflitos com indígenas, no interior do sertão do sertão do Centro-Oeste. De certa maneira, seus trabalhos estão enraizados nas histórias desse lugar.
Hal Wildson faz parte da geração de jovens artistas brasileiros que realiza trabalhos politizados, operando ora em confronto com os poderes constituídos, ora dando voz aos silenciados e rosto aos invisibilizados, ora inserindo mensagens avessas ao colonialismo ou ao obscurantismo. Guardadas as diferenças de contexto, linguagem e técnicas, é como se novamente se reacendesse a chama da arte política produzida no Brasil durante o final da década de 60 e toda a década de 70 do século 20, em objeção à Ditadura Militar (1964–1985). Porém, esse reacender acompanha os discursos, os debates e as demandas do presente.
Preocupado em criar trabalhos que se fundam na estética e na ética, o artista entende que há necessidade de reinventar alternativas para a crise que toma todas as esferas da vida pública nacional, visando contribuir com a minimização ou a contenção do crescente processo de arruinamento da sociedade brasileira. Assim, ele trabalha a linguagem da arte para instaurar uma reflexão política que permita vislumbrar um lugar utópico.
A reinvenção do artista se dá olhando para o passado, buscando referências nos saberes da ancestralidade negra e indígena, nas formas de pensar a sociedade que sejam capazes de conduzir à reparação dos erros e dos equívocos cometidos pela civilização. É assim que tenciona fundar sua obra em uma utopia, um sonho de sociedade igualitária e justa. Hal Wildson cita a filosofia Teko Porã desenvolvida pelo povo Guarani, que postula uma relação de equilíbrio, harmonia e respeito entre todos os seres e os ambientes que constituem os sistemas interligados da vida sobre a terra. Cita também a filosofia Ubuntu, cuja origem é associada aos povos sul-africanos Zulu e Xhosa, que tem como princípios o viver com o Outro, a solidariedade, a partilha harmoniosa em comunidade, operando com a ideia de humanidade comum. Ambas as matrizes filosóficas não ocidentais caminham na contramão do individualismo e da propriedade privada, tão estimadas pela lógica capitalista, e fundam sociedades em que estão ausentes as diferenças e os desníveis entre seus membros. As filosofias Teko Porã e Ubuntu são formas de pensar que, apesar das distâncias culturais e temporais, se afinam com a clássica utopia renascentista descrita pelo inglês Thomas More (1478–1535) como um lugar onde os bens e o trabalho são repartidos igualmente entre todos os membros da sociedade, inexistindo a distinção entre pobres e ricos. Em comum, as três filosofias postulam o humanismo pelo princípio da igualdade, compromissadas com o bem-estar da comunidade.
Na obra intitulada Re-Utopya para Pindorama (2022), Hal Wildson se apropria da estrutura visual de um estandarte representado em um cartaz comemorativo à abolição da escravatura, datado de 1888. Posicionado no centro do cartaz, o estandarte ostenta o Brasão Imperial legendado pela referência à Lei Áurea e integra a ilustração de um pacto social nunca efetivado no Brasil. Ao recriar o estandarte usando a técnica do bordado, ele enfatiza a qualidade fantasiosa da narrativa construída para minimizar os efeitos da escravidão, na tentativa de esconder a gravidade de suas marcas, e também simula um estandarte oficial, com estética nacionalista, que ostenta os nomes das filosofias ancestrais Teko Porã e Ubuntu escritos abaixo da bandeira Re-Utopya.
Alguns trabalhos de Hal Wildson integram a disputa de narrativas em torno dos símbolos nacionais, que atualmente mobiliza os debates políticos. A bandeira republicana fora editada sobre a mesma estrutura da bandeira imperial projetada por Jean-Baptiste Debret (1768–1848). No centro do losango amarelo foi inserida a esfera azul constelada de estrelas brancas, e sobre ela se estendeu a faixa branca com o lema positivista bordado com linha de cor verde, no qual se lê “ordem e progresso”. É preciso destacar que no governo republicano, desde o início até o presente, a ordem é manobrada para manter o povo sob controle e impedir a convulsão social, e o progresso, carro-chefe da modernização, é destinado a sustentar a riqueza das elites econômicas.
Para Hal Wildson, diante da constatação da ruína da sociedade se impõe a necessidade de reinvenção de uma utopia para o Brasil, que abra perspectiva de futura superação dos conflitos estruturais, vindos de sua herança colonial e determinantes da condição de subdesenvolvimento que afeta grande parte da população. Uma utopia que primeiramente permita resistir às forças dominadoras, que asseguram a ordem sobre os pequenos para garantir o domínio dos grandes. Hal Wildson insere seu pensamento crítico alterando o elemento verbal da Bandeira Nacional, substituindo o lema positivista pela palavra “Re-Utopya”, que carrega em si o humanismo das filosofias Teko Porã e Ubuntu, assim ele nomeia a vontade transformadora de justiça social buscada na ancestralidade e no sentido igualitário do conjunto social.
Neste ano em que se comemora o bicentenário da Independência do Brasil, a bandeira Re-Utopya foi hasteada no tronco de uma pequena árvore – plantada no Ipiranga, local de celebração permanente da narrativa oficial da independência, em São Paulo. Do acontecimento resulta o trabalho chamado Re-Florestar Utopya (2022), políptico de nove fotografias que registram a bandeira flamulando em um espaço vazio. A ideia de reflorestamento responde criticamente ao desmatamento provocado já desde o início da colonização no ciclo do pau-Brasil, e agravado agora pela noção equivocada de desenvolvimento decorrente da expansão do agronegócio e da mineração, atrelada ao desrespeito às leis de proteção ambiental. Impressas sobre papel, as imagens recebem intervenções manuais com tintas de cores preto e vermelho, ressaltando a extensão das raízes das árvores que simbolizam as ancestralidades indígena e africana, ao mesmo tempo que metaforizam a profundidade do sentimento de pertencimento, alimento da vontade de resistência contra a destruição do patrimônio natural brasileiro.
Do hasteamento da bandeira Re-Utopya no Parque Ipiranga resulta ainda o experimento em vídeo intitulado Re-florestar nossa gente (2022). Nele a imagem foca a bandeira flamulando ao vento contra a paisagem desfocada ao fundo, enquanto vozes de algumas pessoas próximas ao artista, captadas em ambiente doméstico, falam de sonhos e de planos utópicos, tendo destaque a questão indígena no Brasil. A utopia do artista refletida na do outro é um modo de reviver a utopia coletiva, ancestralmente vivenciada e hodiernamente necessária.
A associação de técnicas digitais de produção, edição e impressão de imagens com técnicas manuais tradicionais, como pintura ou desenho, é aplicada também na execução das obras da série Afluentes (2022), cujos títulos são tomados dos nomes de rios e riachos próximos às áreas de povoamento quilombola ou de aldeamentos indígenas: Açucena, Araguaia, Bacaxá e Juruena. As cores preto e vermelho também são protagonistas e a cartografia informa o território onde os veios correm. Sobre as imagens fotográficas dos rostos de pessoas negras e indígenas, ou mestiças cafuzas, são pintadas linhas que têm origem no mapa hidrográfico do Brasil. A palavra afluente pode ser um substantivo, significando um curso de água que alimenta outro ainda maior, e pode ser um adjetivo, significando o que flui em abundância. Em Afluentes os dois significados encontram-se no retrato do País feito junto ao retrato de seu povo mais abandonado, e o artista nos lembra que ele também é filho daquele povo nascido nas beiras dos rios, nos interiores distantes.
Como um quadro de papiloscopia, Singularidades (2022) reúne sobre o suporte 441 impressões digitais. As digitais são desenhos particulares encontrados nas papilas dos dedos das mãos e singularizam e identificam cada um dos seres humanos. No caso do trabalho de Hal Wildson, trata-se de sua própria digital – fixada durante o processo de construir imagens por meio da datilografia – misturada com imagens fotográficas documentais pertencentes a arquivos públicos. Na verdade, cada impressão digital da obra é um retrato que funde uma informação oriunda do corpo do artista com a imagem de outra pessoa, é um encontro, uma conversa ficcional do artista com os retratados, aqueles que formam o alicerce do povo brasileiro, que estão na base da pirâmide social, o extrato mais rebaixado dos trabalhadores, afrodescendentes e indígenas, mestiços de toda sorte, os que foram chamados de párias, vadios, pés-rapados, Zé-ninguém, sem-eira-nem-beira, sujeitos à exploração da força de trabalho, relegados às periferias, condenados à exclusão e à opressão.
Utopia original (2021) é um trabalho realizado com a mistura de datilografia, xerografia e carimbos sobre 384 folhas de papel. Assim como em Singularidades a quantidade de elementos é mais que uma questão formal de produção técnica da imagem, integra a linguagem da obra, que, como uma alegoria, somente pela junção dos fragmentos pode se configurar. A ideia de unir fragmentos é intrínseca ao processo de criação de Utopia original, que surge da composição de diversas fotografias de manifestações políticas populares ocorridas no Brasil. A junção das diferentes fotografias cria uma grande manifestação fictícia, que reúne compacta massa humana de trabalhadores que se expressam em protesto político. Há um uso poético da palavra original no título que remete tanto ao conceito de origem, quanto ao de unicidade da obra de arte, tensionando o fato de que a obra Utopia Original é feita de cópias que, até certo ponto, negam a condição de original. As imagens são reproduzidas sobre fotocópias de páginas do livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro (1922–1997), clássico da antropologia nacional, publicado em 1995, e que reflete sobre existência dos brasis caboclo, sertanejo, caipira, crioulo e sulino, dentro do grande Brasil, sobre a formação étnica e as questões de raça, cor e mestiçagem, sobre o nascimento de brasileiros entre os indígenas e os negros, sobre o complexo processo civilizatório de formação do povo.
Por fim, imagens do painel Utopia original são reproduzidas no selo oficial dos Correios – dentro de uma campanha intitulada Movimentos Populares, feita em comemoração ao Bicentenário da Independência – e em dois cartões de arte postal, editados como múltiplos para o lançamento do selo realizado durante a exposição. Por meio do selo, a Utopia original de Hal Wildson penetra na sociedade e difunde sua mensagem utópica, fechando um ciclo na sua trajetória que aciona a reflexão sobre a função social do artista e da arte.
*Artista visual e curador independente.