Hal
Wildson
AMOR, ORDEM E PROGRESSO
Olívia Mindêlo*
Entre 2020 e 2021, quando o Brasil tentava dormir em meio aos números aterradores da pandemia da Covid-19, Hal Wildson viveu um momento de suspensão durante o sono. O artista teve dessas experiências oníricas que poderiam ser o prenúncio para a (re)criação de um território pleno de suas funções vitais – incluindo corpo, mente e espírito. Transcendendo o contexto de então, o sonho trazia a atmosfera de um dia vivido por Hal com os “parentes” amigos da Aldeia Rio Silveira, dos guarani mbyá, no litoral norte de São Paulo. De quebra, alinhavava também a relação que ele mesmo vinha tecendo, em seu trabalho, entre memória, esquecimento e as narrativas da nossa história reproduzidas através de discursos e símbolos de poder.
Em um manifesto que guia sua produção artística recente, Hal nos relata: “Naquele dia sonhei, vi a palavra escrita de urucum e dendê: Re-Utopya, da palavra e seu simbolismo vi uma bandeira do Brasil, mas entre as estrelas se escrevia: ‘Teko Porã e Ubuntu’ substituindo o slogan positivista ‘ordem e progresso’. Talvez esteja aí a solução... já que não dá pra apagar a invasão do Brasil, que seja possível então a sua reinvenção. RE-UTOPYA! Reescrever a utopia brasileira é escrever este país com Teko Porã e Ubuntu”.
A imagem de capa desta edição da Continente e a que abre este ensaio visual são parte da materialização desse sonho e integra a série de obras do artista goiano que, vindas de um insight, são um convite para reimaginarmos o nosso mundo. Como ele explica, Re-Utopya, sua divisa para a bandeira nacional, funciona como uma síntese poética de duas visões complementares. De um lado, a filosofia indígena teko porã, do tupi-guarani, remete ao sentido de bem-viver em comunidade, numa dimensão relacional ampla e integrada ao meio ambiente, “um ser vivo e ativo”; de outro, a filosofia africana ubuntu, baseada no “eu sou porque nós somos” – “eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão, partilha, respeito, empatia”, cita em seu manifesto.
O que significa reinventar o Brasil a partir de sua bandeira? O que significa reimaginar esta nação em 2022? Estamos certamente em um ano simbólico para esse exercício coletivo, numa trincheira crucial de autorreflexão sobre quem somos e o que queremos ser. Como fatos, sentimos a conta chegar com a volta da fome, a alta da inflação e do desemprego, a destruição acelerada da Amazônia, dos povos indígenas e seus defensores, o genocídio contínuo e crescente da população negra, as mudanças e os colapsos climáticos e, acima de tudo, um governo federal que – como analisa Eliane Brum no livro Brasil, construtor de ruínas (Arquipélago Editorial, 2019) – representa não apenas uma ameaça à democracia: “o bolsonarismo é um risco à civilização”.
Além disso, temos datas. Em 2022, relembramos o centenário da Semana de Arte Moderna e as suas tentativas de elaborar uma identidade nacional; neste setembro, marcam-se os 200 anos da Independência do Brasil; em outubro, as eleições para presidente, governadores, deputados e senadores; e, em novembro, a maior das celebrações patrióticas, a Copa do Mundo. O país que, nos últimos anos, sofreu vários “7x1” em diferentes campos e arca com as síndromes pós-Covid, há de superar o estresse pós-traumático em curso?
Para lembrar a fala do filósofo Vladimir Safatle à Agência Pública, às vésperas das eleições de 2018, “quando você não acerta as contas com a história, a história te assombra”. O país que não quis encarar feridas coloniais e políticas, tapando-as sob o discurso oficial e oficioso, agora tenta estancar um sangue que jorra das profundezas. Eis o nosso tempo. Como boa obreira que é dos momentos de crise, a arte nos provoca a sair do senso comum, a suspender o peso dos dias, a simular algum horizonte. Melhor diria o artista Gustavo Torrezan, para quem a arte, sendo via de pesquisa, se apresenta mais como a possibilidade de “habitar um problema do que apontar uma solução”.
Os artistas contemporâneos que reunimos nestas páginas partilham, de alguma maneira, desse ímpeto que os levou a revisitar o maior dos símbolos nacionais. Procurando repensá-lo ou mesmo desestabilizá-lo, esses 15 nomes de diferentes gerações e regiões do país propõem novos arranjos visuais à bandeira republicana instituída em novembro de 1889, cujo desenho, utilizado até hoje, foi de Décio Villares. O pintor adaptou, à época, a insígnia do Brasil imperial aos ideais positivistas, conservando o retângulo verde e o losango amarelo, ao tempo em que preencheu a esfera com o azul, as estrelas e a faixa, em substituição ao brasão ladeado pelos ramos de café e tabaco.
Como narra o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, no livro A formação das almas – O imaginário da República no Brasil (Companhia das Letras, 1990), a adoção das bandeiras nacionais sempre foi motivo de disputa na história da formação dos Estados modernos. O Brasil não seria exceção. A flâmula atual encontrou oposição desde o momento em que foi oficializada, sendo alvo de críticas e ridicularização nos jornais, vindas sobretudo dos chargistas. “A principal inovação, a que gerou maior polêmica, a que ainda causa resistência, foi a introdução da divisa ‘Ordem e Progresso’ em uma faixa que, representando o zodíaco, cruzava a esfera em sentido descendente da esquerda para a direita”, escreve o autor.
Decerto, esse é também um dos incômodos que atravessam algumas obras dos artistas deste ensaio – e mesmo outras que ficaram de fora. Quando não reelaboram as cores e formas da bandeira, atacam diretamente o lema de Auguste Comte defendido e instituído goela abaixo por um dos grupos que estiveram na base dos ideais republicanos do país. Diferente da Revolução Francesa, a bandeira brasileira nunca foi um emblema erguido em bases populares, bem como, a saber, a própria República, instalada sob as sombras de mais de 300 anos de escravidão.
Leia o texto completo no Link da Revista: https://revistacontinente.com.br/edicoes/261/amor--ordem-e-progresso